Guerra, Epidemia e Assassinatos
Estes não são temas tranquilos de se tratar em ocasião nenhuma, ainda mais em 2022, quando são feridas abertas. Guerra e Epidemia sempre acompanharam a trajetória histórica da humanidade. A partir da Primeira Era Global (1400-1800), elas atuaram em conjunto na colonização europeia do restante do mundo. Na década de 2020, com a Pandemia de COVID-19 e a Guerra na Ucrânica, estas mazelas reapareceram aos olhos de algumas parcelas da população mundial que nunca haviam as visto de perto. Em 2022, a Amazônia assistiu a mais um Assassinato de defensores seus, desta vez de Bruno Pereira e Dom Phillips. Essa mesma floresta, em 1988, velou Chico Mendes quando ainda curava as cicatrizes do Genocídio dos povos indígenas.
Ler sobre eventos desse tipo nos livros de História é uma coisa, vivenciá-los é outra: é exaustante. O desconforto, todavia, possibilita o reconhecimento de que tais eventos não são restritos ao passado, uma vez que existiram constantemente na História Global. No máximo, apenas estiveram fora do campo de visão de algumas pessoas, em tempos específicos e lugares privilegiados.1Por exemplo, no Norte Global, determinados grupos humanos estiveram distantes de guerras e epidemias, mas somente em alguns países, depois do período marcado pela gripe espanhola e as duas grandes guerras. Em contraposição, na segunda metade do século XX e início do XXI, tal privilégio foi muito mais raro no Sul Global, como se observa nestas listas de guerras e epidemias. No Sul Global, na América, na Amazônia, a guerra colonial nunca cessou, desde que se iniciou no século XVI. Nisto, as epidemias sempre fizeram parte da história dos povos indígenas. Ainda hoje, pessoas continuam sendo assassinadas em conflitos pela terra.
O avanço da fronteira de exploração econômica predatória dos territórios da Ásia-América-África-Oceania são o ponto de contato entre guerra e epidemia. Essa marcha de destruição e morte foi iniciada pelos regimes coloniais europeus e ainda é engendrada pelo Sistema-Mundo Capitalista. Desde o século XVI até o tempo presente, essa longa marcha desenrola-se, em suma, em (i) extrativismo predatório, (ii) destruição da biodiversidade, (iii) doenças e (iv) etnocídio. O impacto do Imperialismo Ecológico, da expansão biológica da Europa sobre os povos e territórios colonizados, foi devastador. Por um lado, epidemias de doenças trazidas pelos europeus sequencialmente assolaram as populações nativas. Por outro, a introdução de animais e plantas invasores mudou drasticamente a paisagem e o modo de produção alimentícia dos territórios da além-Europa.2A produção global de alimentos no tempo presente foi moldada por estruturas coloniais: os países do Sul Global, ex-colônias europeias, são os grandes produtores mundiais, todavia de alimentos cuja origem é de outros territórios.
Atividades extrativistas, agropecuária e monocultura em larga escala causam a diminuição da biodiversidade. Neste contexto de diminuição, as poucas espécies que se impõem frequentemente são portadoras de patógenos (10.1038/nature06536). Além disso, a perda de biodiversidade aumenta o risco de surtos epidêmicos e pandemias em potencial (10.1038/d41586-020-02341-1). Ainda que seja difícil prever quando os surtos podem ocorrer, existe hoje o mapeamento das zonas de risco e os organismos internacionais, como a OMS e as Nações Unidas, estão cientes da situação, que é preocupante.
Nos séculos XX e XXI, a guerra de exploração neocolonial inaugurou, em cima de todos os processos anteriormente mencionados (i-iv), a (v) desarticulação violenta de toda e qualquer rede de resistência comunitária ou de solidariedade global em defesa dos territórios dos povos nativos da Ásia-América-África-Oceania. É neste contexto que entra a terceira atrocidade: o Assassinato de pessoas defensoras das vidas e terras indígenas das periferias mundias. Essa violência busca enfraquecer as Alianças de povos que atuam como barreiras ao avanço da marcha da morte promovida pela exploração capitalista.
O passado-presente da guerra (neo)colonial no Brasil
A continuidade da guerra contra os Povos Indígenas do Brasil transparece na longa duração temporal das explorações colonial e neocolonial. Assim como a violência colonialista do passado oprimiu e dizimou diferentes etnias com aval jurídico e religioso no século XVI, vide a Doutrina da guerra justa; a violência neocolonialista no tempo presente atinge comunidades inteiras com aval estatal.3Um exemplo disso é o etnocídio de Belo Monte, ocorrido no século XXI, causado pela construção da usina hidrelétrica na Volta Grande do Xingu, na Amazônia. Também, da mesma forma que a guerra colonial beneficiou-se de doenças contagiosas, que enfraqueceram a resistência dos povos indígenas e causou seu declínio populacional; a neocolonialista é uma guerra de baixa intensidade, que opera táticas como o racismo ambiental e a desarticulação violenta da (re)produção comunitária, resistência culturais e redes de solidariedade da luta indígena.4Uma “guerra de baixa intensidade” mescla ações civis e militares, mirando não apenas as bases de produção material dessas populações, mas também sua própria reprodução biológica e social. Sua táticas são perniciosas, como a degradação dos modos de vida indígenas à sobrevivência e a submissão dos sujeitos ao alcoolismo, violência sexual e/ou sofrimento psíquico (e decorrente suicídio). Estudos têm aplicado o conceito de às frentes nacionais de opressão das resistências indígenas. Especialmente a partir do caso dxs Zapatistas, veja-se Decolonizing Politics (2008), de Mariana Mora.
Dentro disto, a prática estabelecida de assassinato de lideranças e pessoas solidárias das lutas em defesa dos diferentes biomas do Brasil é uma tática perniciosa que pulveriza a responsabilidade da violência, dissolve a culpa entre indivíduos secundários e mascara que tudo isso se trata (e sempre se tratou) de uma guerra.
A continuidade da guerra se dá porque ainda há continuidade da resistência indígena. Do século XVI aos dias atuais, as diversas etnias nativas do território hoje chamado Brasil (re)existem por meio de ações autônomas, articuladas nos movimentos indígenas nacional, continental e global (10.1515/9780822395867-008). Um exemplo emblemático foi a organização de barreiras sanitárias de Emergência Indígena, frente ao descaso do Estado brasileiro durante a pandemia de COVID-19. A crise pandêmica que assolou o mundo a partir de 2020 é apenas a irmã mais nova de todas as epidemias que dizimaram milhares de povos nativos de Pindorama, Tawantisuyu, Abya Yala e outros rincões, da Patagônia ao Alasca.
Marcos da história do tempo presente
No coração da Amazônia, as pessoas defensoras da Floresta continuam a ser assassinadas em uma guerra silenciosa
O Brasil é um dos países mais letais para pessoas defensoras da terra.5Entre 2002 e 2013, de acordo com relatório da Global Witness, o Brasil acumulou metade do total de mortes de defensores da terra do mundo. O assassinato de Dom Phillips e Bruno Pereira, em 2022, demonstrou ao mundo a continuidade do problema. Três décadas antes, em 1988, o assassinato de Chico Mendes colocou este problema no panorama global da discussão ambientalista. Estes casos emblemáticos inserem-se no contexto dessa guerra de longa duração e, nisto, situam as alianças de diversos povos defensores da Floresta em redes de resistência e solidariedade.
Chico Mendes dispensa apresentação. Liderança sindical, ecossocialista, mártir. Chico morreu por lutar pela floresta Amazônica e pela proteção do modo de vida de seus habitantes, em resistência à marcha de destruição capitalista. Sua morte foi uma tragédia anunciada e, até hoje, não pode ser tratada como um caso isolado. Em uma enunciação naquele ano que seria o último de sua vida, ele disse:
Cultura política na Floresta
Chico unificou a luta dos seringueiros à dos povos indígenas na Amazônia, desde o Acre. À frente do Conselho Nacional dos Seringueiros, aceitou a proposta encabeçada pela União das Nações Indígenas para selar uma Aliança dos Povos da Floresta em defesa de suas culturas e do ecossistema amazônico. Uma aliança entre indígenas e seringueiros foi considerada perigosa.
Pouco tempo antes de ser assassinado, Chico contou que se alfabetizou lendo colunas políticas de jornais. Sua alfabetização e formação política foram concomitantes. Quem lhe ensinou a ler e a revolucionar foi um homem chamado Euclides Fernandes Távora, um comunista, partisão da Coluna Prestes, que se amoitara na selva acreana desde que voltara do exílio na Bolívia, no qual participara das revoluções camponesas, depois de escapar da prisão política no Brasil.6Em O testamento do homem da floresta (em inglês, Fight for the Forest: Chico Mendes in His Own Words), livro publicado em 1989, ele relatou sua biografia e comentou assuntos de sua ldie política em entrevista a Cândido Grzybowski.
Durante a Ditadura Vargas, nas décadas de 1940 e 1950, o oeste amazônico configurou-se como um porto seguro para pessoas revolucionárias. Na década de 1960, o Acre tornou-se também rota da guerrilha socialista. Por exemplo, em 1966, uma cena inacreditável se sucedeu, dessas de quase realismo mágico: pelo Acre passara um argentino rumo à Bolívia, que por acaso era também um comandante da Revolução Cubana.7Klein, D.S. “Comunistas, revolucionários e a passagem de Che Guevara pelo Acre: um olhar sobre um contexto de resistências entre 1962 e 1966”. Em: Anais do XXVI Simpósio Nacional de História, julho 2011; Silveiro, E.M. Chico Mendes: coragem e ternura na resistência acreana. Desenvolv. Meio Ambiente, v. 48(7-24), nov.2018; Sobrinho, P.V.C. “Chico Mendes: a trajetória de uma liderança”. São Paulo em perspectiva, 6(1-2):175-186, jan-jun, 1992.
A provável passagem de Ernesto Che Guevara pela região foi lembrada em histórias contadas por pessoas locais. Uma delas foi um barbeiro, que conta ter aparado a barba do ilustre cliente. Outra história é ainda mais encantada, pois fora contada pelo próprio Chico Mendes, que narrou como (quando jovem) conversou com Che em um barzinho, numa encruzilhada da Estrada da Borracha.8Conforme Chico relata:“Eu nunca tinha visto seu retrato (do Che…) mas tinha ouvido seu nome através da Rádio Central de Moscou. (…) Eu estava caminhando pela BR-317 e, cansado, parei no bar (…). Naquele instante chegou um cidadão vindo das bandas de Rio Branco. Demonstrava ser uma pessoa muito educada; encostou-se no bar e puxou conversa comigo e com outros que estavam próximos. Falou que tinha interesse em conhecer a selva amazônica, principalmente, os seringais e a selva boliviana. (…) Dava para identificar que não era brasileiro, misturava português com espanhol. (…) Alguns meses depois, em Xapuri, passei diante da delegacia e um retrato me chamou atenção. Dizia que Che se encontrava em território boliviano para organizar o terror na região. Fiquei abalado. (…) Tempos depois, ao ler o livro sobre a guerrilha do Che na Bolívia reafirmei a convicção de que cruzei com ele. Posso afirmar com certeza: era o Che! Em: Sobrinho, op. cit., p. 182-3. Se é verdade ou mentira, o que importa é a mística ao redor do possível encontro, em 1967, entre futuros mártires.9Che Guevara foi assassinado em 9 de outubro de 1967, não sem antes escrever: “Onde quer que a morte possa nos surpreender, que seja bem-vinda, desde que este nosso grito de guerra tenha chegado a algum ouvido receptivo”, em Message to the Tricontinental (1967)
Ao que aqui interessa, a biografia de Chico revela indícios de como a luta política se espraiava pelos seringais. A Amazônia não era, nem o é, vazia ou segregada do restante do mundo como se supõe. Qualquer discurso sobre a ecoregião que passe pelas ideias de vazio demográfico ou natureza intocada, é conversa para boi dormir.10Estes são tropos comuns dentro da história da perpceção da floresta Amazônica no discurso governamental brasileiro: veja-se por exemplo Franchi, T. «Da conquista do inferno verde à proteção do paraíso tropical: o discurso militar brasileiro sobre a Amazônia no século XX. Tese de doutorado em desenvolvimento sustentável. Brasília: UNB, 2013. Em períodos distintos da História, diferentes culturas afirmaram suas políticas no interior da Floresta, defendendo este espaço terrestre que foi historicamente habitado e manejado por populações nativas e seus descendentes.
Floresta antropogênica
Atualmente, a palavra Amazônia conjuga as seguintes imagens: uma floresta tropical intocada, pouco habitada, de flora densa e fauna exuberante; uma região de intenso desmatamento e destruição da biodiversidade. Tais imagens decorrem de descrições e constatações feitas nos últimos três séculos do segundo milênio (10.1098/rspb.2015.0813). Estes foram tempos em que as populações humanas nativas da região já se encontravam dizimadas ou em baixa demografia, também de inauguração da destruição em larga escala da floresta, em trajetória crescente. Estas imagens confluem em uma visão ocidental sobre as relações entre humanos e natureza. Mesmo quando revestida de boa intenção, tal visão tende a uma ineficaz perspectiva salvacionista.
Nas últimas décadas, estudos arqueológicos e da história ambiental revelaram que culturas complexas, com grandes populações estabelecidas em amplos territórios, habitaram a Amazônia e cultivaram-na por milênios. A Floresta Amazônica é antropogênica, isto é, a um só tempo cultural e natural; sua biodiversidade é resultado de um complexo mosaico de relações (de mão dupla) entre sujeitos humanos e não-humanos (10.1590/2178-2547-BGOELDI-2019-0009). Isto quer dizer que a domesticação humana da paisagem, por meio de sistemas de cooperação biológica e manejo sustentável, deu-se muito anteriormente ao estabelecimento da destruição colonial como principal relação natureza-humanidade no interior da floresta.
Uma visão salvacionista tende a ser etnocêntrica e a-histórica: tem dificuldade em levar em consideração as histórias indígenas, que são entrelaçadas à história da Amazônia; de entender a Floresta e seus povos como sujeitos autônomos. A Amazônia é indígena. O futuro da Floresta não reside meramente em sua salvação e conservação como paraíso intocado, mas efetivamente no fim do capitalismo global, cuja marcha de destruição e morte ameaça sua existência e a de seus povos. Enquanto isto não for possível, a escuta ativa dos habitantes ancestrais da Amazônia sobre como manejar a biodiversidade de forma sustável é o único caminho de resistência. Esse caminho, hoje, é assessorado por ferramentas tecnológicas, pesquisa científica e solidariedade política, todos críticos ao capitalismo.
O temor da solidariedade
Bruno Pereira foi um indigenista brasileiro que atuou na terra indígena do Vale do Javari. Ele trabalhou como coordenador da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), principalmente lidando com povos indígenas isolados; antes de ser exonerado de seu cargo pelo governo de Jair Bolsonaro. Depois da exoneração, ele passou a atuar de forma independente, ainda que licenciado pela FUNAI, apoiando a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (UNIJAVA). Esta entidade congrega organizações de base de sete povos indígenas da região.
Em sua trajetória, Bruno atuou na capacitação de patrulhas indígenas para o monitoramento e defesa de seus territórios com o auxílio de drones e computadores. Por sua atuação, ele era ameaçado por garimpeiros, madeireiros e pescadores que exploram ilegalmente aquele território. A formação de monitores ambientais era uma iniciativa antiga da Unijava. Junto à WWF, Bruno acrescentou o aspecto técnico às patrulhas indígenas, por meio de treinamentos oferecidos na língua daquelas populações.11WWF Brasil. «Projeto equipa e treina indígenas para defenderem seu território em área ameaçada, 10 de dezembro de 2021. Sobre o projeto de monitoramento, Bruno contou no final de 2021 que os povos da UNIJAVA:
“já expulsaram invasores e já acionaram o Ministério Público com denúncias formais. (…) Fizemos uma capacitação para uso de mapas, drones e equipamentos de radiofonia com energia solar. Eles fizeram o mapeamento do nível de invasão da região e identificaram grande quantidade de invasores”
Dom Philips foi um jornalista britânico naturalizado no Brasil. Auxiliado por Bruno, chegou ao Vale de Javari para entrevistar indígenas e ribeirinhos da região para o livro que então escrevia, intitulado Como salvar a Amazônia?. Apaixonado pelo bioma, ele dedicou sua vida a reportar internacionalmente a injustiça socioambiental no país, denunciando o avanço dos crimes contra a natureza e povos da Floresta Amazônica – especialmente cometidos sob a chancela do governo de Jair Bolsonaro. Suas reportagens foram publicadas em jornais de impacto global, como o britânico The Guardian.12Pajolla, M. «Apaixonado pelo Brasil, Dom Phillips foi entender a floresta para ajudar na sua preservação, 15 de junho de 2022.
Sem intenção de entrar nos detalhes do assassinato, ressalto apenas a motivação: a solidariedade entre diferentes povos. Assim como Chico Mendes tornou-se mais perigoso para as forças reacionárias na Amazônia quando aceitou o convite de uma organização indígena para unificar a luta do sindicato dos seringueiros à Aliança dos Povos da Floresta; Bruno Pereira e Dom Phillips tornaram-se igualmente temidos por, respectivamente, capacitar tecnicamente e dar visibilidade a luta indígena na Floresta Amazônica. Laços solidários entre pessoas de etnias, nacionalidades e ofícios diferentes fortalecem as redes de resistência anticapitalista e, por esse motivo, são atacados.
Uma verdade emerge desse caso: o desaparecimento de Bruno Pereira não teria atingido a visibilidade que atingiu, se ele não estivesse acompanhado de Dom Phillips, um cidadão do Norte Global (10.48075/amb.v4i1.29388). Diante das informações congregadas aqui, é possível perceber que estes assassinatos não se tratam de casos isolados. Ao contrário, são resultado de uma prática historicamente estabelecida.
Pra variar,[ironia] estamos em guerra!
Concordo com a jornalista Eliane Brum quando ela diz que declarar que estamos em guerra não é retórica.13Brum, E. Não é incompetência, nem-descaso: é método. Nexo Jornal, 13 de junho de 2022. É um tardio reconhecimento que não pode mais ser negado ou abstraído, inclusive pelas pessoas que pensavam estar bem longe do front. Esta ilusão foi desafiada pelos efeitos da guerra neocolonial sobre os povos e territórios indígenas: as fumaças das queimadas, a crise hídrica e as temperaturas descontroladas que bateram às portas dos grandes centros urbanos.
Como aponta Brum, as notícias tristes que nos acompanham no tempo presente não resultam de incompetência, nem descaso, mas de método. Todavia, este método é antigo, pertence à histórica marcha de destruição que entrecruza guerra, epidemias e assassinatos. Diante dessa constatação, é preciso agir como pessoas que estão em guerra, assumir a linha de frente contra a crise climática, contra o extermínio das diversidades terrestres, humana e ecológica. Tomar partido nesta luta, cujo epicentro se dá nos corações do mundo. Antes tidos como periferias,
“os centros do mundo são os enclaves da natureza, os suportes naturais de vida, como as florestas tropicais e os oceanos, os demais biomas, como o Cerrado e o Pantanal. Nesses centros, as semanas começam e terminam com casas incendiadas, tiros desferidos por pistoleiros, pedidos de socorro de defensores da floresta e de comunidades inteiras, ameaças de morte.”14Brum, E. Não é incompetência, nem-descaso: é método. Nexo Jornal, 13 de junho de 2022.
Discordo de Brum quando ela afirma que um limite foi cruzado quando essa guerra vitimou um jornalista branco, de passaporte estrangeiro. Também que isto seria claramente uma virada nessa história; um recrudescimento empreendido principalmente por governos proto-fascistas como o da Ditadura Militar e de Bolsonaro. Ao examinar a longa duração dessa guerra, é possível perceber inúmeros momentos em que a linha do absurdo foi cruzada. Também a ininterrupção dos ataques neocoloniais – até mesmo em governos presumidamente de esquerda, efetivamente conciliadores de classe, como o de Lula e Dilma Roussef – demonstra uma constância dos projetos de expropriação neocoloniais.
Qualquer sensibilidade recente à questão, surpresa ou até mesmo choque decorre do fato de que nós (pessoas majoritariamente brancas, oriundas de centros urbanos e/ou parte alguma intelectualidade) fomos apenas recentemente apresentadas à face escancarada dessa guerra que há 500 anos destrói vidas e biomas. Como escreveu Rita Lee, “lá se foi a mordomia”; no caso, o privilégio de encarar esses temas apenas na teoria, nos livros de história, postergando o impostergável, o chamado da práxis.
Reconhecida a perene invisibilidade das injustiças socioambientais no Brasil – e suas estratégias de ocultação dos fatos e de relativização da dimensão dos problemas gerados por essa guerra silenciosa -, é preciso falar sobre isso, por mais doloroso que seja. É preciso tornar visíveis as pessoas que estão nessa resistência a tanto tempo. Inclusive, relembrar os mártires tombados no caminho, reencantar as histórias com místicas. Por fim, é preciso não apenas apoiar, mas se engajar nessa luta que não é mais solidária, mas inegavelmente nossa também.
Agradeço à Jorge Saturno pela grande contribuição neste artigo.